quarta-feira, janeiro 4

limite - mario peixoto

Um professor de cinema brasileiro fez a seguinte pergunta: se você fosse refilmar Limite, como faria?

Se me fosse proposto a refilmagem de Limite, iria diminuir a duração do filme, reduzindo a história em uma hora aproximadamente. Para tanto, deixaria mais curtos alguns planos que muitas vezes tornam o filme lento. Como exemplo, o da mulher andando na estrada, do homem de terno que também caminha, assim como alguns planos-detalhe: o carretel de linha e a tesoura. Também faria o mesmo com as cenas que exploram as pernas e outras partes do corpo. Dessa forma, faria uma montagem mais rápida e dinâmica.

Iria manter a decupagem próxima à original, utilizando muitos dos enquadramentos e movimentos de câmera vistos no filme.

A interpretação dos atores iria ser menos teatral, e introduziria alguns diálogos, principalmente nas cenas onde o homem e as duas mulheres estão no barco, assim como nas cenas mais narrativas, evocadas por suas memórias.

O filme seria colorido e a trilha mais minimalista, com momentos de silêncio, explorando os ruídos e sons dos objetos e ambientes. O som do mar seria muito utilizado, e a orquestração encontrada no original seria reservada apenas para os momentos mais narrativos, onde a ação é que movimenta a cena.   

A cena do naufrágio seria mais realista, com planos próximos de curta duração, ao invés do recurso de filmar apenas o mar revolto sem a embarcação.

Exploraria com mais planos a cena final dos urubus debandando do alto do monte. Primeiro iria mostrar as rochas, secas e de luz dura, contrapondo-se ao mar, e em seguida mostraria os pássaros saindo do monte, como se estivessem indo se alimentar dos corpos dos náufragos.

Mais do que a cena da mulher com as algemas sobre o rosto, mostrada no início e no fim do filme, acho que a cena dos urubus sintetiza de forma emblemática toda a idéia da obra: cada indivíduo é um baú isolado de histórias, e muitas vezes a memória nos atormenta, nos torna náufragos de nós mesmos, e o presente vira um oceano monocromático e adormecido.

Somos ao mesmo tempo um ponto de vista e um testemunho do quanto, ao longo da vida, suportamos a solidões e perdas, mas todas as histórias acabam do mesmo jeito. A morte é o limite. 

algumas linhas sobre o cinema novo

"Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro participa do mecanismo e o altera através de nossa incompetência criativa em copiar". (Paulo Emílio Sales Gomes in Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento. SP: Paz e Terra, 1996).

 O CLIMA ESQUENTA A 40 GRAUS

O Cinema Novo é reconhecido por muitos como o movimento que mais pensou em retratar o Brasil na tela, de uma forma autêntica, sem utilizar-se de fórmulas estéticas e de produção copiadas do caro modelo de produção estadunidenses, tentativas frustradas recém-vividas por estúdios como Cinédia e Vera Cruz.

Influenciados pelas estéticas da Nouvelle Vague e do Neo-realismo, os jovens cineastas cinemanovistas transformaram radicalmente, em forma e conteúdo, o fazer cinematográfico nacional. Com produções de baixo orçamento, equipes reduzidas, locações reais e temáticas que discutiam nossos problemas políticos e sociais, o Cinema Novo literalmente foi pras ruas, em busca do povo brasileiro e seu fascinante e peculiar universo.

O marco inicial veio em 55, com o filme Rio 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos. O filme é um semi-documentário sobre os costumes cariocas, vistos sobre a ótica de cinco garotos de uma favela, que trabalham vendendo amendoim num lindo dia de domingo. Isso por si só já não agradou a censura. Muito mais estava por vir.

UMA ESTÉTICA FAMINTA POR NOVOS FILMES

Na tentativa de discutir a identidade político-cultural do brasileiro e motivados pelas respostas artísticas vindas do pós-guerra, jovens cineastas como Paulo César Sarraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Cacá Diegues, Sérgio Ricardo, Walter Lima Jr e o mais polêmico e importante deles, Glauber Rocha, logo se afirmariam com obras que fazem parte da melhor safra do cinema moderno brasileiro.

Sufocado pela crescente pressão que sofreria com o Regime Militar, instituído anos depois de sua formação, o Cinema Novo não teve uma vida longa, entretanto, foi muito profícua. Com obras que traziam em si as inquietações da classe intelectual brasileira e utilizando-se das formas e linguagens do cinema moderno, logo vieram reconhecimento e prêmios em festivais internacionais.

Uma das provas da riqueza cultural, em termos de produção e qualidade, é a possível distinção que se pode fazer, dividindo o movimento do Cinema Novo em três fases. Em síntese, observamos nos primeiros filmes um olhar um pouco mais distanciado, preocupado em registrar, sem discutir profundamente, o perfil, o cotidiano do brasileiro, bem ao modelo do Neo-realismo italiano, sem as estereotipias utilizadas nas chanchadas. A idéia fixa na cabeça era a de colocar a cara do brasileiro na tela, fosse ela a do menino do morro em Rio, 40 graus, do sertanejo de Vidas Secas ou a do cangaceiro em Deus e o Diabo na Terra do Sol.

A segunda fase já se coloca mais questionadora, com um discurso intelectual mais apurado, tendo em Terra em Transe o maior exemplo, a meu ver, na cena em que o intelectual jornalista tampa a boca de um popular, olha pra câmera e diz algo do tipo: esse é o povo brasileiro, e ele não sabe falar nada. Agora, o discurso é o personagem principal.

A terceira e última fase é marcada por certo distanciamento do real, utilizando-se das alegorias, cores e tendências do Tropicalismo efervescente. Com a censura tomando conta da cultura nacional e vedando tudo o que cheirasse transgressão, Macunaíma pode ser tido como o filme mais emblemático do período. É impossível reler a obra de Mário de Andrade sem ter na lembrança as cenas antológicas alcançadas por Joaquim Pedro e interpretadas por Grande Otelo.

UM CINEMA A SER DESCOBERTO

Ao ouvir os depoimentos depreciativos sobre do cinema novo de alguns realizadores da chamada atual retomada do cinema brasileiro, principalmente sobre a figura e obra de Glauber Rocha, penso que não entenderam a importância que foi este movimento, além de ser uma forma inocente e leviana de não lhe prestar a devida importância.

Assim como a Bossa Nova revolucionou e trouxe novas e definitivas formas de se fazer a arte pela qual se propôs a realizar, o Cinema Novo conseguiu adquirir aquilo que toda obra de arte quer: assumir suas influências e se tornar uma nova influência para os que virão. Não é à toa que renomados diretores estrangeiros citam com freqüência as obra dos cinemanovistas.