domingo, outubro 30

lavoura arcaica

“...era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho.”*

Lavoura Arcaica conta a história de André, filho de uma família de imigrantes árabes, que sai de casa por entrar em conflito com as tradições e principalmente com a postura rígida e dogmática do pai. Pedro, o filho mais velho, vai até a pensão onde André mora para levá-lo de volta à família, que sofre cada vez mais com a partida do “filho pródigo”.  Após um longo diálogo de silêncios e desabafos, os dois voltam pra casa, e André é recebido com uma festa de final surpreendente e trágico. Antes de partir, André teve uma relação incestuosa com Ana, sua irmã. Na festa de seu retorno, André é presenteado com a cena de Ana dançando quase que possuída, jogando vinho pelo corpo, envergonhando a todos, com os adereços das prostitutas que André conheceu (guardados numa caixa e roubados por Ana). Inesperadamente surge o pai, também possuído pela loucura, e com um instrumento cortante, utilizado para a lavoura (alto teor simbólico), derruba Ana a um só golpe, sugerindo sua morte. Enquanto todos se desesperam, André, afastado, se cobre com folhas caídas, como fazia nas festas de sua infância.      

O LIVRO
Lavoura Arcaica é o primeiro dos dois romances publicados de Raduan Nassar. Foi lançado em 1975, arrebatando críticos e público da mesma forma instantânea e intensa com que o autor conduz o livro. Numa espécie de fluxo de consciência, o narrador personagem André reconstrói sua história com imagens altamente poéticas, metáforas primorosas de alcance universal e um ritmo que se mantém vivo por toda a narrativa. Embora alterne passado e presente numa voz contínua, e opta por uma pontuação resumida a ponto e vírgula em sua maioria, sua unidade o torna completamente compreensível sobre as inquietudes e situações da vida de André.

O FILME
Luis Fernando Carvalho roteirizou, dirigiu, produziu e editou o filme. Lavoura Arcaica foi sucesso de crítica, ganhando mais de 25 prêmios em diversos festivais do Brasil e exterior. É cultuado por um público mais restrito, devido à sua longa duração e ritmo lento, com narrações de longos trechos do livro, permeados por imagens muitas vezes beirando a abstratas. Referências a Bergman (A hora do lobo), Tarkovski (O espelho), além de uma primorosa fotografia, são pontos positivos na construção do filme, assim como a trilha sonora e direção de arte e elenco.
É considerado por muitos uma obra prima do cinema nacional, apesar de ser o filme de estréia do diretor, que tem uma carreira extensa na televisão, e receber críticas negativas como subserviência ao texto (Carvalho utilizou o livro como fonte de diálogo e narração para a maioria das cenas), exagero no cuidado da arte, beirando à uma composição quase publicitária, duração longa do filme, impossibilitando atingir um público mais numeroso e menos acostumado com esse tipo de cinema.
Acredito que se justificam mais os argumentos positivos, uma vez que o filme dialoga com o processo de imigração no Brasil, levantando os choques decorrentes, exemplificados na figura de André, ao mesmo tempo que, preservando os conflitos interiores expressos no texto, materializa o eco universal que comporta a obra.  
ANÁLISE DE UMA CENA
“...não se constranja, meu irmão, encontre logo a voz solene que você procura, uma voz potente de reprimenda, pergunte sem demora o que acontece comigo desde sempre, componha gestos, me desconforme depressa a cara, me quebre contra os olhos a velha louça lá de casa.”

A cena escolhida é quando Pedro diz a André o momento que percebeu que este havia ido embora, quando viu as gavetas de seu armário vazias. No livro, esta fala está no capítulo 5. No filme, aos 16 minutos: “...só então é que compreendi, como irmão mais velho, o alcance do que se passava: tinha começado a desunião da família”.
No livro, o narrador, André, imagina uma resposta a Pedro, mas não diz, revelando apenas ao leitor seu conteúdo: segundo André, a desunião começou muito antes de sua partida. Essa possível resposta desencadeia uma viagem na memória de sua infância, e assim como outras na sequência, não é dada ao irmão, que recebe apenas o silêncio e o olhar de André. Durante esta cena, o narrador repete construções do tipo “eu poderia ter dito isso, mas não era hora”, “quase deixei escapar, mas achei que seria inútil dizer qualquer coisa”, reafirmando sua decisão de permanecer em silêncio.
No filme, entretanto, esta resposta é claramente dada por André ao irmão, frente a frente, num tom de convicção, enquanto se encaram na meia luz do quarto.

“... e assim que eu me levantava, Deus estava do meu lado em cima do criado-mudo, e era um deus que eu podia pegar com as mãos e que eu punha no pescoço e me enchia o peito e eu menino entrava na igreja feito balão.”

Mesmo sem saber os motivos que levaram o roteirista/diretor Luis Fernando Carvalho a optar por tal mudança, é possível levantar algumas conclusões.
Ao fazer André responder de fato a Pedro, e não apenas imaginar, Carvalho dá mais força ao personagem, reafirmando suas características de iconoclasta e questionador, qualidades que serão ainda mais explícitas nas cenas com o pai. Isso funciona muito bem para a narrativa no cinema, não chegando a ser um plot point (ponto de virada), mas cumpre uma função dramática importante na trama, revelando desde o início o choque de opiniões, elemento principal que conduz a história.   
Carvalho poderia ter utilizado o recurso de voice over, que aparece inúmeras vezes pelo filme, mas transferindo o texto para a fala de André faz com que a cena revele ao espectador mais diretamente a relação entre os irmãos, tendo André como protagonista da história, e Pedro, ao lado do pai, seu antagonista.

É interessante perceber o valor dramático que a cena ganha, e como se desenvolve a linha evolutiva do filme quando o irmão mais velho relembra o momento que percebeu a partida de André, e associa isso como o fator inicial para toda a tristeza que tomou conta da família.
“só então é que compreendi, como irmão mais velho, o alcance do que se passava: tinha
começado a desunião da família" ele disse e parou, e eu sabia por que ele tinha parado, era só olhar o seu rosto, mas não olhei, eu também tinha coisas pra ver dentro de mim, eu poderia era dizer "a nossa desunião começou muito  mais cedo do que você pensa, foi no tempo em que a fé me crescia virulenta na infância e em que eu era mais fervoroso que qualquer outro em casa" eu poderia dizer com segurança, mas não era a hora de especular sobre os serviços obscuros da fé...”

Entretanto, Carvalho resolve dar a voz direta a André, o que movimenta muito a história, aumentando consideravelmente seu valor dramático, o mostrando como um ser de tal forma convicto de seus pensamentos que não precisa escondê-lo. A opção por André falar o que pensa prenuncia a mesma atitude que terá em outras ocasiões, como na cena com a irmã, na igreja, ou a cena com o pai, quando regressa.
O personagem do livro deixa claro que “não era hora de especular sobre os serviços obscuros da fé...”, porém o personagem do filme diz claramente para Pedro:

“a nossa desunião começou muito mais cedo do que você pensa, foi no tempo em que a fé me crescia virulenta na infância e em que eu era mais fervoroso que qualquer outro em casa... era boa a luz doméstica da nossa infância... essa claridade que mais tarde passou a me perturbar, me pondo estranho e mudo, me prostrando desde a puberdade na cama como um convalescente.”
É interessante ainda notar que a pausa entre a afirmação de Pedro e a réplica de André, no filme, é mínima. Além do André do filme de fato dizer com firmeza, olhando nos olhos do irmão, ele o faz prontamente, como se sua resposta estivesse esperando para ser ouvida há muitos anos.

OUTRAS CONSIDERAÇÕES
Na cena em que a mãe acorda André (criança), ela canta uma cantiga em árabe para ele, e depois ele repete algumas frases também em árabe que ela diz. Essas cenas não estão no livro, e talvez o diretor tenha optado para diferenciar ainda mais esse momento de André (criança), ainda cheio de fé e repetindo a tradição pelas frases, para o André (jovem) rebelde e solitário. 
Luis Fernando Carvalho utiliza duas vozes para narrar a história, uma mais distante do espaço-tempo da história, curiosamente gravada pelo próprio diretor; e outra do ator que interpreta André. Este recurso facilita a compreensão da esfera a qual o personagem salta para rememorar e explicar o seu percurso. Se é a voz do ator, significa que faz parte do diálogo com o irmão ou é alguma memória trazida no momento que a história está sendo contada. Se ouvimos voice over do diretor, significa que é um texto além do momento presente da história, é um narrador que se faz ausente, de um tempo indeterminado e de um lugar impreciso.
Vale lembrar que o diretor utilizou o próprio livro como roteiro de muitas cenas e principalmente dos diálogos e de todas as narrações, o que deu fidelidade ao texto.  

terça-feira, outubro 11

sobre dois textos de andré bazin

1.      O MITO DO CINEMA TOTAL

Para Bazin, a força motriz para o surgimento do cinema foi a vontade do homem em recriar a realidade da melhor forma, dando à fotografia movimento, som e cor, na tentativa de superar o tempo. É essa busca ao que ele chama de realismo integral que fez com que descobertas e avanços científicos separados convergissem para a construção desta “arte mecânica”, no início do século XX.

Discordando dos que viam nos primeiros filmes (pb e mudo) exemplos da própria essência do cinema, de um “cinema puro”, Bazin ironiza dizendo que o cinema ainda nem foi inventado, e propõe uma leitura inversa de sua história. Para ele, quanto mais as imagens em movimento darem ao espectador as sensações da realidade, mais esta arte se aproximará de seu ideal de origem, o que ele chama de mito do cinema total.

Diante dos atuais avanços em relação ao som, efeitos especiais e principalmente imagens em 3D, o olhar que Bazin lançou há mais de meio século sobre a evolução do cinema, pelo menos o chamado cinema narrativo-naturalista, se faz atual e coerente.


2.      ONTOLOGIA DA IMAGEM FOTOGRÁFICA

Cada sociedade busca, à sua maneira, uma forma de superar a idéia da morte. Para os egípcios, o embalsamamento impedia a ação do tempo sobre a matéria, imortalizando-a, tornando assim possível o retorno do espírito.

Segundo Bazin, o caminho percorrido pelas artes plásticas foi guiado por essa necessidade de eternizar o homem através de sua imagem, livrando-o, pelo menos de forma simbólica, da finitude da vida. As pinturas e esculturas serviriam para criar um universo paralelo, ideal e eterno, marca permanente de nossa espécie.

Assim, o advento da fotografia foi o maior acontecimento na evolução das artes que têm na imagem sua forma de representação. A impressão da imagem no papel fotográfico é a consagração absoluta da vontade humana em imprimir e eternizar o tempo da forma mais realista possível. Com o advento da fotografia, as artes plásticas perderam a função de reconstruir o mundo como o vemos, entrando, de certa forma, numa crise que geraria inúmeras vanguardas e conceitos diversos, na tentativa de reafirmar sua necessidade e dar continuidade a sua evolução.  

Bazin ainda chama a atenção para o caráter objetivo da fotografia. Ao contrário da pintura realista-naturalista, não é a mão do artista que dá forma ao que é visto, mas é a lente objetiva da máquina que captura o momento, sem a possibilidade da intervenção humana, a não ser na escolha do que será fotografado, aumentando completamente a credibilidade na imagem, tornando-a quase a própria realidade representada. 

os textos analisados estão no livro: A experiência do cinema: antologia / organizador: Ismail Xavier / Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes, 1983