quarta-feira, maio 28

Peter Greenway

Greenway me faz lembrar aqueles artistas construídos que só conseguem emplacar um sucesso por toda a carreira. O primeiro filme seu que assisti foi o maior que o diretor fez, na minha opinião. Em nome e em força de imagens, texto e música: O Cozinheiro, o Ladrão, a Mulher e o Amante. Quando terminei de assistir as duas horas de várias idéias perfeitamente interligadas, pude voltar a respirar, e antes de retomar completamente o fôlego, me convenci que estava diante de um futuro mito. Um novo Kubrick, me precipitei a concluir. Alguém com sangue novo, que veio pra inovar.

Ledo engano... Percorri as prateleiras atrás de outras obras que confirmassem minha expectativa. Mas infelizmente nada encontrei. Diálogos evasivos, núcleos que não se completavam, atores sem uma direção convincente. Enfim, filmes que não sabiam direito para aonde ir. Fiquei decepciondo. Uma homenagem para Fellini, que era mais qualquer outra coisa do que isso; uma crítica à Hollywood, usando os mesmos elementos que levam o filme para uma auto contradição fatídica; e um trabalho mais que chato sobre uma mulher-livro, que na verdade nem sei se é isso, pois por mais que eu me esforçasse, não consegui assistir 40 minutos do filme.

vídeo arte


Desde o início do século XX, a população já começara a se acostumar com a imagem movimento. O aparecimento dos “mass media” já havia despertado a preocupação de Bertolt Bretch. Ao contrário do artista plástico Marinetti, o teatrólogo e poeta despertava a atenção para o poder político-ideológico dos novos meios de comunicação.

Os anos 60 marcam o aparecimento do vídeo, que desde logo apresenta particularidades em relação ao cinema e à TV: o vídeo capta diretamente o material audiovisual para um código analógico ou digital, assim a gravação e o armazenamento conjugam o mesmo espaço. O caráter analógico da TV, bem como o mecânico do cinema, necessitam de um aparato técnico especial para reproduzir o que está gravado na fita magnética e no fotograma, ao contrário do vídeo digital que, depois de capturado, pode ser transferido para um computador onde será finalizado. Isso demonstra uma enorme economia na escala de produção, pois a manipulação da imagem depende apenas do desenvolvimento de hardwares, ou seja, do atual desenvolvimento tecnológico de uma nação.

Em 1967, A Sony foi a primeira a comercializar o aparelho de vídeo analógico. A máquina de filmar e o gravador de som eram construídos por aparelhos separados. Em 1983, surgiu a camcorder que fez a união entre esses dois aparelhos.

A Vídeo Arte surge assim no contexto dos protestos anti-guerras, os movimentos feminista e estudantil, movimento para a libertação da América Negra, etc. De acordo com a necessidade da época, a tecnologia do feedback possibilitou as transmissões ao vivo. O vídeo promoveu assim uma realidade concreta da imagem, ao contrário do ilusionismo da televisão e do cinema.
Desde 1950, era debatida a valorização do corpo como performance. Por volta de 1970, os artistas, que rompiam com o caráter realista da obra de arte, centravam-se no corpo como material estético, superfície de projeção, indicador de estados mentais.

O movimento feminista encontra também expoentes na Vídeo art. Em 1978 “Technology/Transformation: Wonder Woman” Sara Birnbaum deu início ao debate sobre a imagem das mulheres na sociedade e nos mídeas, assim como e ao retrato da feminilidade, que adquiriu as formas mais variadas possíveis nas décadas seguintes.

O cinema, devido a sua teoria da montagem e ao estudo sobre o olhar subjetivo da câmera, desde o século XX fornece estímulos para a formação da Vídeo Art. O cineasta Jean-Luc Godard foi o primeiro a realizar a união entre elementos cinematográficos e vídeo. Em meados dos anos 90 o movimento Dogma foi o primeiro a estipular o vídeo digital como forma de captação obrigatória para a realização do filme.

Desde o início, percebe-se que a Vídeo Art sempre esteve relacionada com outras linguagens artísticas e com outros meios de comunicação como a televisão, a performance, a escultura e o cinema.

Com a evolução tecnológica trazendo continuamente ao mercado novos meios de mídias, arquivos, processadores, capturadores e exibidores de vídeo e afins, o futuro do cinema, do vídeo, e principalmente da Vídeo Arte está sendo escrito dia-a-dia.

Podemos dizer que no Brasil a Vídeo Arte ainda não tem uma ressonância significativa, mas já percebe-se uma aproximação de alguns artistas brasileiros, que, levados ou não pelas facilidades tecnológicas, começam a se expressar através dessa arte fascinante, indefinida e extremamente atual.

segunda-feira, maio 26

linguagem cinematográfica

por ana ferreira e zé guilherme fidelis

O termo linguagem, quando relacionado a uma determinada arte, é entendido como o conjunto de elementos que a diferencia das demais. É aquilo que a legitima como uma manifestação autônoma, portadora de seus próprios instrumentos e métodos de se comunicar com os indivíduos e com outras expressões artísticas.

Apenas duas décadas após a primeira sessão de cinema, no Grand Café, em Paris, surgiram os primeiros teóricos do cinema. Os pioneiros, como Hugo Mustenberg, Rudolf Arheim, Sergei Eisenstein e Bela Balázs faziam parte da tradição formativa. Influenciados pela psicologia cognitivista e pelos fenômenos fisiológicos psíquicos (persistência da imagem na retina e formação de sentido através da concatenação de planos), os teóricos formativos compreendiam o cinema como um fenômeno meramente mental, e afirmavam que as imagens só ganhavam sentido após serem processadas pela psique humana. Em consonância com o movimento formativo estão o expressionismo alemão e o cinema de Eisenstein, este último ainda somando à tradição formativa a ideologia socialista. Eisenstein desenvolveu princípios e tipos de montagem (métrica, tonal, sobretonal e rítmica) a partir de uma gramática de planos (montagem de atração) estabelecida por ele.

Paralelamente à tradição formativa, estruturava-se a teoria realista do cinema. Dois de seus expoentes foram Siegfried Kracauer e André Bazin. Esses teóricos viam o cinema como um meio de reprodução da realidade, e não como veículo para a sua distorção, pois estabeleceram que a matéria-prima do cinema é o fotograma, que a princípio, reproduz com exatidão o tempo e o espaço que situam-se à frente da lente. A favor de um maior realismo fílmico, Bazin ressaltou a importância da profundidade de campo e dos planos-seqüência, a fim de evitar o distanciamento do espectador e a distorção da realidade.

Contudo, a teoria contemporânea francesa, inspirada nos estudos de Bazin, ampliou o paradigma, libertando a análise da linguagem cinematográfica de sua matéria-prima. A priori, Jean Mitry propôs a síntese entre a teoria formativa e a teoria realista em “Esthétique et psycologie du cinéma”. Em 1964, Christian Metz descreve os processos de significação do cinema na publicação “Cinéma: langue ou langage”. O teórico, apoiado pelo estudo lingüístico de Saussure, questionou o conceito de linguagem cinematográfica, estipulando diferenças básica entre o plano e a palavra, a seqüência e a oração: a) É imensurável o números de planos que pode-se produzir ao contrário da palavra considerando que o léxico é finito, no entanto assim como as palavras os planos podem ser ordenados de inumeráveis formas afim de gerar um sentido. b) Os planos são criações do cineasta ao contrário das palavras que já foram estipuladas. c) A comunicação no cinema é concretizada através das imagens, enquanto na fala, é metafórica, pois seu significado foi socialmente pré-estabelecido.

Resumindo, o avanço dos estudos teóricos sobre o cinema modificou o sentido do termo linguagem cinematográfica. Ao longo do tempo, a definição foi se distanciando da relação direta com a linguagem verbal, teoria utilizada pelos formalistas russos (Eisenstein, 1929), e adquirindo uma conotação mais metafórica, até a afirmação de que o cinema era uma “linguagem sem língua” (Metz, 1968).

Hoje, entende-se como linguagem cinematográfica o conjunto de fenômenos fílmicos que se manifestam na manipulação da imagem em movimento, com a finalidade de estabelecer a comunicação com o espectador.

Elementos da linguagem cinematográfica

Assim como a escala faz parte da linguagem musical, e o verso compõe o poema, o cinema dispõe dos seguintes elementos básicos para se concretizar:

Plano: o enquadramento da cena. A escolha do plano, juntamente com a montagem, direciona o olhar do espectador para o que se quer evidenciar. O plano pode privilegiar, por exemplo, um elemento do todo (plano detalhe, close-up), pode revelar o personagem e parte da cena (plano aberto), ou ainda mostrar o personagem da cintura pra cima (plano americano). Essas e outras definições dos tipos de planos facilitam a comunicação entre os realizadores de um filme, tornando possível o planejamento da obra.
Plano americano: É o plano que enquadra a figura humana do joelho para cima. Geralmente não comporta mais do que três personagens reunidas. Tem esse nome devido à sua grande popularidade entre os diretores de Hollywood das décadas de 30 e 40.
Plano seqüência: É a filmagem de toda uma ação contínua através de um único plano (sem cortes).
Close: É o plano enquadrado de uma maneira muito próxima do assunto. A figura humana é enquadrada do ombro para cima, mostrando apenas o rosto do personagem. Com isso, o cenário é praticamente eliminado e as expressões tornam-se mais nítidas para o espectador. Corresponde a uma invasão no plano da consciência, a uma tensão mental considerável, a um modo de pensamento obsessivo.
Plano detalhe: Semelhante ao close, mas se refere a objetos. Enquadra um objeto isolado ou parte dele ocupando todo o espaço da tela. Ressalta um aspecto visual, eliminando o que não é importante no momento
Angulação: São determinados pela posição da câmera em relação ao objeto filmado.
Plongée: A câmera filma o objeto de cima para baixo, ficando a objetiva acima do nível normal do olhar. Tende a ter um efeito de diminuição da pessoa filmada, de rebaixamento.
Contra-plongée: A câmera filma o objeto de baixo para cima, ficando a objetiva abaixo do nível normal do olhar. Geralmente, dá uma impressão de superioridade, exaltação, triunfo, pois faz "crescer" o/a ator/atriz.
Inclinado: É uma tomada feita a partir de uma inclinação do eixo vertical da câmera. Pode ser empregada subjetivamente, materializando aos olhos do/a espectador/a uma impressão sentida por uma personagem, como uma inquietação ou um desequilíbrio moral.
Movimentos de câmera: Constituem a base técnica do plano em movimento. São definidos levando-se em conta se o movimento da câmera é de rotação (em torno do seu eixo) ou de translação (locomovendo-se em avanço ou recuo, subindo ou descendo).
Panorâmica: A câmera se move em torno do seu eixo, fazendo um movimento giratório, sem sair do lugar. Trata-se de um movimento da câmera que pode ser horizontal (da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda), vertical (de cima para baixo ou vice-versa) ou oblíquo. A panorâmica vertical é também conhecida como tilt.
Travelling: A câmera é movida sobre um carrinho (ou qualquer suporte móvel) num eixo horizontal e paralelo ao movimento do objeto filmado. Este acompanhamento pode ser lateral ou frontal, neste último caso podendo ser de aproximação ou de afastamento. Ao lado temos um exemplo de travelling lateral.
Seqüência: Conjunto de cenas sucessivas, que mantêm uma mesma unidade de tempo e espaço. Um exemplo é a seqüência inicial do filme O poderoso chefão (1972), que se passa no casamento da filha de Dom Corleone, interpretado por Marlon Brando. Essa seqüência é composta por várias cenas independentes, que apresentam os personagens, e estão ligadas pelo pano de fundo da festa de casamento. A seqüência ainda pode ser definida como a maneira pela qual os planos de uma mesma unidade serão apresentados. Se for uma seqüência ininterrupta, será utilizado um plano-seqüência.
Montagem: a organização dos planos capturados, de maneira que o filme alcance o discurso esperado.
Corte seco: é quando há uma transição imediata, direta de uma cena para outra. Foi um dos primeiros procedimentos da montagem, usado na hora da transição de um filme para outro. Usado quando se quer obter imagens que se sucedem dentro de um enredo.
Fusão: É quando uma cena desaparece simultaneamente ao aparecimento da cena seguinte. As cenas se superpõem: enquanto uma se apaga, a outra aparece. Mantém a fluidez e a suavidade de uma seqüência. Seu uso pode significar uma passagem de tempo. Também é usada quando se quer suprimir ações que sejam dispensáveis na narração (processo conhecido como elipse).
Fade: Quando a imagem vai surgindo aos poucos de uma tela preta (ou de outra cor qualquer), temos o fade in. Quando ela vai desaparecendo até que a tela fique preta, temos o fade out. A velocidade com que a imagem dá lugar à tela preta e vice-versa pode ser controlada de acordo com o efeito desejado. O fade in é comumente usado no início de uma seqüência e o fade out, como conclusão. Pode denotar a passagem de tempo ou um deslocamento espacial, assim como na fusão.
Cortina: É uma forma de transição de planos que ocorre quando uma cena encobre outra (geralmente entrando no eixo horizontal, mas pode ocorrer também no sentido vertical, diagonal, em íris e em uma infinidade de formas). Pode ocorrer também através de uma linha que corre o quadro, mudando as ações.
Montagem Paralela: É quando duas ou mais seqüências são abordadas ao mesmo tempo, intercalando as cenas pertencentes a cada uma, alternadamente, a fim de fazer surgir uma significação de seu confronto. Ocorre quando se quer fazer um paralelo, uma aproximação simbólica entre as cenas, como por exemplo a aproximação temporal.

A formação da linguagem cinematográfica

Para analisarmos como o cinema se tornou uma arte com características próprias, é preciso conhecer seu percurso histórico, pois foi através dele que a linguagem cinematográfica se formou, renovando-se continuamente.

O cinema surgiu no final do século XIX, com o avanço de estudos científicos e mecânicos que, a partir da fotografia, possibilitaram a manipulação da imagem em movimento, através de uma seqüência de fotogramas. Os irmãos Lumière, tidos por alguns como os “criadores do cinema”, não acreditavam que a invenção iria se popularizar tanto, muito menos que se transformaria numa arte, com escolas, correntes, movimentos e toda uma teorização específica.

Meliès, Griffith e Eisenstein estão entre os cineastas que mais contribuíram para que o cinema se distanciasse das expressões artísticas que o precederam e o influenciaram.

Meliès mostrou que o cinema poderia ser um instrumento para a manifestação do onírico, do ilusionismo e da fantasia. Contemporâneo aos Lumière, ele se distancia da utilização da câmera como puro registro de documentação do cotidiano. Com Meliès, o cinema se liberta da função realista que sempre foi atribuída à fotografia. Por outro lado, o ilusionista francês que se tornou cineasta impregnou em sua obra elementos burlescos do século XVI. Isso não diminui a importância de Meliès, uma vez que a arte, assim como todas as outras áreas do conhecimento humano, continuamente retorna ao passado e o renova, o modifica. Certamente Meliès contribuiu para a evolução cinematográfica, com seus experimentos e efeitos que fascinavam as platéias da época.

Griffith, juntamente com Portter e outros contemporâneos estadunidenses, foi aos poucos deslocando a câmera da posição de um espectador que observa o filme do centro da platéia, introduzindo-o à cena, multiplicando seu ponto de vista, manipulando sua maneira de observar. Antes dele, os filmes eram vistos sempre de uma perspectiva de quem assiste a uma peça teatral. Griffith dá ao cinema a possibilidade que o teatro não tem: deslocar o ponto de vista do observador. Com isso, pode-se contar uma estória alternando duas situações que aconteciam ao mesmo tempo, mostrando o ponto de vista de um determinado personagem, ou colocando em evidência apenas algum elemento da cena. Griffth também contribuiu para que o cinema se equiparasse às grandes obras literárias. Desse modo, renovou a linguagem cinematográfica criando recursos que causassem no espectador efeitos como fluxo de consciência e paralelismo narrativo. Outro importante elemento da linguagem cinematográfica que surgiu com Griffith foi o método de interpretação dos atores. A partir dali, o cinema foi adquirindo uma forma mais naturalista nas expressões e gestos dos personagens, se distanciando ainda mais do teatro.

Sem Eisenstein a concepção de montagem seria outra. O cineasta estudou profundamente a técnica de manipulação dos fotogramas, teorizando-a e trocando experiências com outros formalistas russos, como Kulechov e Vertov. Tal contribuição no processo de edição fílmica emancipou ainda mais o cinema em relação a qualquer outra forma de arte. Eisenstein relacionava os seus métodos de montagem com outras áreas do conhecimento, como a escrita oriental dos ideogramas e as relações de intervalos da pauta musical. A influência de Eisenstein na linguagem cinematográfica muitas vezes é vista em produções que se utilizam de imagem em movimento, mas não são categorizadas como cinema, como é o caso da TV e do vídeo. Eisenstein, ao estudar a linguagem cinematográfica, chegou a relacionar os planos com as frases e as palavras da linguagem verbal.

A partir da década de 1930, com o surgimento de uma sonorização mais eficaz que possibilitaria a audição de diálogos sincronizados com a imagem e de trilhas registradas no próprio fotograma, o cinema ganha mais um elemento que marcaria profundamente sua evolução. Assim como o próprio cinema, a sonorização fílmica foi se aperfeiçoando desde as primeiras exibições, uma vez que o cinema sempre foi sonoro, seja por sonoplastias e execuções musicais que eram realizadas durante a projeção, seja por discos gravados que eram tocados juntamente aos filmes.

Na década de 1950 a utilização da cor estava amplamente difundida. O sistema Tecnicolor havia sido empregado pela primeira vez em 1933, no filme Vaidade e Beleza, de Rouben Mamoulian. Assim como o som, a cor deu mais possibilidades para que a linguagem cinematográfica evoluísse, uma vez que o cinema, desde sua origem, está associado ao aprimoramento da tecnologia industrial e mecânica.

A partir das considerações feitas acima, pode-se afirmar que ocorre hoje mais uma transformação na linguagem cinematográfica. Com o surgimento de novas mídias e veículos de captura e exibição da imagem, a era digital está modificando a própria definição de cinema. Os equipamentos e materiais estão em constante avanço e nos próximos anos teremos múltiplas formas de compreender o cinema, e consequentemente, sua linguagem.

Charles Foster Kane e Antonio Ricci

Certamente, os dois mundos opostos retratados em Cidadão Kane e Ladrões de Bicicleta não são unidos pelo cartaz de Rita Hayworth, colado por Antonio pouco antes de sua bicicleta ser roubada. A atriz, que foi casada com Orson Welles, não é o melhor exemplo para encontrarmos combinações entre esses dois personagens de características externas tão distintas.

Kane é rico, poderoso e caminha pela vida como se jogasse xadrez com várias rainhas. Antonio é pobre, humilde, e castigado pelo pós-guerra italiano, tenta apenas sobreviver. Em síntese, o primeiro representa a figura arquetípica do opressor, e o segundo, a imagem do desafortunado, um dos oprimidos mais bem construídos pelo neo-realismo.

Entretanto, aproximando o “zoom analítico” ao interior dos protagonistas, vemos que dois elementos fundamentais estão presentes em Kane e Ricci. Ambos são motivados por algo que perderam; ambos têm a necessidade de serem aceitos pelo olhar do outro.

Kane morre no início do filme, mas diz a palavra que será o mote de toda a estória. Rosebud, esse pequeno trenó que conteve todo o trauma causado pela falta de amor dos pais, que entregam o pequeno Charles aos cuidados de um banco. O trenó é a síntese de uma infância perdida, que moldou todo o caráter de Kane.

Antonio é motivado a reconquistar sua bicicleta, e se encontra em tamanho desespero que rouba outra, quebrando a sua própria moral social e cristã, heranças de uma criação humilde e resignada. A bicicleta é o símbolo daqueles que, desamparados socialmente, começam a perder toda a dignidade.

O segundo fator que une os dois personagens é a necessidade de aceitação do outro. Kane declina fatalmente quando não pode mais ter o olhar de complacência de sua esposa. Ela lhe nega um amor que ele acredita não ter recebido dos pais. Antonio se redime consigo mesmo quando seu filho demonstra compreensão pela situação altamente embaraçosa do furto. Todos os moradores podem maldizê-lo, mas seu filho o aceita.

Nesses aspectos, Kane e Ricci quebram a barreira que separa a ostentação do capital americano com a precariedade da Itália no fim da Segunda Guerra.

Três irmãos de sangue

Acabo de assistir ao documentário Três Irmãos de Sangue, de Ângela Patrícia Reiniger. O filme resume de modo competente a história dos irmãos Betinho, Chico Mário e Henfil. Eles são o sociólogo, o músico e o cartujornalista que se tornaram figuras fundamentais na reabertura democrática brasileira (se é que esse termo é conveniente), na luta contra a então desconhecida e ainda hoje temida aids, e em tudo que fosse relacionado à luta pela liberdade do ser humano. Três irmãos que realmente quiseram e fizeram algo pra sacudir esse bando de católicos fixados nos raios catódicos de seus televisores.

O documentário utiliza-se de uma linguagem usual no gênero para contar a sua estória. Entrevistas atuais intercalam-se com depoimentos e imagens históricas dos irmãos. E é justamente por não querer ousar ou arriscar estéticas injustificáveis que o filme nos permite viajar sem interrupção pela trajetória dessas figuras essenciais para o crescimento da identidade brasileira.

A resposta de Betinho ao seu envolvimento com o jogo do bicho é um dos momentos em que a seguinte afirmativa se torna inquestionável: aqueles três irmãos eram fodas! Ver as imagens de Henfil discursando despojadamente, com a mesma franquesa presente no olhar dos outros dois irmãos, é perceber que lutar por um ideal é o maior sentido que se pode dar à vida (fazia tempo que não escrevia uma frase tão clichê, mas não consegui apagá-la mesmo assim.

Lembro de um livro que eu via em casa quando era criança. Tentei ler e não entendi muita coisa. Desisti logo. Mas eu gostava muito da capa. Tinha o fundo azul e um desenho que não me lembro bem se era uma careca ou um globo terrestre com um carinha em cima. Ou as duas coisas. O título também era bastante curioso: Henfil na China - Antes da Coca-Cola. Eu ficava pensando quem era o Henfil, e por que antes da Coca-Cola. Perguntei ao meu irmão, e ele me disse que na China não tinha Cola-Cola. Como meu pai havia colocado um dente dentro de um copo com Coca-Cola pra vermos o quanto ela corroia nossos ossos, achei que os chineses é que tinham sorte. Vou ver se encontro esse livro num sebo.